quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Retomo aqui um poema. A palavra "sub-reptício" me fez lembrar dele. Pensava ser o lindo "Áporo", mas é mesmo este, tão bonito quanto:

Passagem do Ano

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e
coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus…

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles… e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

Carlos Drummond de Andrade

(Grifo meu, claro. De alguma forma tentarei incorporar, mesclar, lambuzar isso no texto sobre "Os primeiros soldados". Wish me luck)


 chá de sálvia.

domingo, 5 de dezembro de 2021

 



Só não disse que agora mesmo escrevo uma crítica na qual eu me aproximo de Rísia, protagonista alter ego de seu livro, para falar de Brendo em O dia da posse (Allan Ribeiro, 2021). Também não disse que quem me deu o livro foi uma pessoa importante, numa cidade tão importante quanto. E que levei o livro dela pra praia, e que sem querer passei minha mão um pouco molhada e um tanto salgada de água do mar em sua capa. Obrigada.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

L'arroseur arrosé

Sonhei que regava plantas. Que lindas essas folhagens eu pensava, chegava a olhar perto, quase enfiando a cara na terra. 

E uma especialmente me chamou atenção. A terra tava tão quente que quando a gota d'água caía, ela evaporava. Então eu fui molhando mais essa planta que era mais para um tubérculo, uma batata doce enterrada até a metade, e donde saíam e pendiam tantas folhas verdes (um verde tão clarinho), não tão miúdas, mais para médias. E à medida que eu regava a batata eu conseguia ver sua cor progressivamente ficando mais roxa, mais viva, por conta da água. Fiquei tão feliz. Eu me aproximava como uma lupa, via como uma lupa: meu nariz chegava muito perto das coisas.


segunda-feira, 29 de novembro de 2021

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

“No entanto, é assim que é preciso encarar a imagem na sua realidade sensível e nas suas operações ficcionais; é necessário admitir que elas se encontram a meio caminho entre as coisas e os sonhos, num entre-mundo, num quase-mundo, onde talvez se joguem as nossas dependências e as nossas liberdades.” (Marie-José Mondzain)

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

achado no bloco de notas:

Sonhei que minha avó escreveu um livro com páginas tão finas quanto as da bíblia.

E eu rasgava sem querer o início e o fim.


E eu viajei no tempo. Para o Iriri do passado.

sábado, 30 de outubro de 2021

La fotografía no "re-presenta", tan sólo acontece, acaricia la superficie absolutamente externa de las apariencias, roza la piel leve de la diferencia, captura y retiene ese humor infraleve que, en forma de luz pura, exhala el ser.

José Luis Brea

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

haikai

[11:36, 15/10/2021] Juliano Gomes: minha vida fazia um doce

[11:36, 15/10/2021] Juliano Gomes: vaporosa


erro do corretor.


quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Tudo que ressalta quer me ver chorar



VI

Tu tens um medo:

Acabar.

Não vês que acabas todo dia.

Que morres no amor.

Na tristeza.

Na dúvida.

No desejo.

Que te renovas todo dia.

No amor.

Na tristeza.

Na dúvida.

No desejo.

Que és sempre outro.

Que és sempre o mesmo.

Que morrerás por idades imensas.

Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno. 


Cecília Meirelles

 Quando eu beijo, eu morro.

- Sancha (Djin Sganzerla) em Capitu e o Capítulo (2021), Julio Bressane

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Se eu, um dia, fizer um filme, nele terá uma pessoa dançando sozinha em seu próprio quarto.

Canalizar essa dor, alguma dor. É também isso que quis dizer quando falei que esse negócio de crítica têm mostrado pra mim outros caminhos de liberdade -- porque me parece que posso canalizar essa dor, alguma dor. Não é ruim ser sensível, aqui. Parece que todos os rios podem jorrar no mesmo mar.

[12:08, 07/10/2021] Giuliana Zamprogno: felicidade existe, sophia

[12:08, 07/10/2021] Giuliana Zamprogno: to descobrindo agora

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Numa chamada de vídeo, agora, ouço o sino da igreja de uma cidade que eu não conheço.


Edit: a cidade é Olinda.

sábado, 11 de setembro de 2021

Luísa

(Silêncio)


-Você é de Virgem?
-Sou. E você, de Capricórnio?
-Sou. Eu sabia.
-Eu sabia também.
-Combinamos: terra.
-Sim. Combinamos.

(Silêncio)

do CFA

De repente o amor de sempre não era mais suficiente

Irmã, não há coração suficiente. Não há coração maior para isso tudo. Não há coração suficiente onde eu possa te colocar. Amor maior. Não cabe.


















DIÁRIOS DE MONTAGEM

DIA 1 – 02/09/2021 

A mise-en-scène já está toda dada. Tudo que recebo vem no enquadramento que quero. Só me resta saber juntar.

DIA 2 – 10/09/2021 

Hoje revi algumas fotografias que podem vir a ser material do filme. Muitas e muitas dela. Ela está em tudo. Ela, Marina, e ela, a Morte. 

Ainda não entendo como ela/Ela funciona. 

As melhores fotos são aquelas em que estamos juntas. Talvez deva focar nessas. E nas dos objetinhos.

Querendo ou não é um filme sobre mim. Por mais que eu queira falar dela, deles. É sempre um filme sobre mim. Não posso pretender englobar duas vidas. A do meu pai está aí. A ausência é escancarada.

As fotos estão organizadas por ano, e a cada ano corresponde uma pasta. Cada pasta é cheia de subpastas, elas também bem recheadas. Não há pasta de 2014, e a de 2015 só possui quatro fotos. Em todas essas quatro ela já está com a sonda no nariz. 

A partir daí eu paro de aparecer e minha irmã começa a ser outra pessoa.

E estou sendo pega pelos atos falhos que logo corrijo.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Sob esse ponto de vista, se o cinema moderno nasce com a cena de Roma, cidade aberta, da tortura diante de um terceiro, ele termina talvez com a eterna questão-negação dos últimos filmes de Godard: por que no cinema mostramos sempre os rostos das vitimas e os torturadores de costas? Questão de cenografia, se fosse uma. Tendo, em seu centro, o olhar-câmera, aquele que nega o espectador e destrói todas as identificações. Porque, se filmarmos os torturadores de frente, é contra os espectadores que eles vão agir. C.q.d.

"A rampa", Daney Serge.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

I was taking a picture without knowing that in the 15th century Basho had written: “The willow sees the heron's image... upside down."

(Chris Marker)

Meu psicanalista: Giuliana, o vazio a gente cerca. Não tente preenchê-lo. Mas da primeira vez eu ouvi: Giuliana, o vazio a gente seca. Então talvez seja como a jarra...

o ser da jarra é oferecer o vertido

Com isso, Heidegger conclui que o ser coisa da jarra “não reside de forma alguma na matéria de que consta, mas no vazio, que recebe” (idem, p. 147). O vazio da jarra recebe acolhendo o que dela vazará, assim, a jarra é jarra quando retém e doa. A doação é o vazar da jarra e determina o ser jarra da jarra.

domingo, 22 de agosto de 2021

Sonhei que cuidava do meu próprio bebê. O bebê não havia saído de mim, mas sim era eu mesma, com alguns meses, de roupinha rosa e perninhas de boneco, sendo nutrida por mim, à mesa, pela mamadeira com leite de minha mãe.

Em seguida sonhei que você me "amava". Acordei 5:30 e tive dificuldades para pegar no sono.

sábado, 14 de agosto de 2021

 Os vivos são governados pelos mortos. Que nada! Os vivos são governados pelos mais vivos ainda.

- Jorge Mautner

manhã:

acabo de ler 

a mensagem 

de alguém

para alguém que se chama coração

e diz bem assim

no grupo de whatsapp:

"boa noite Coração !" 

e

esqueço o nome 

do meu 

blog...

bom dia, coração.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Eu sei que demora

Para um corpo estragar
Para um corpo realmente ficar ruim
E expelir só uma massa amarela fedorenta
Mas hoje, na estrada com minha mãe 
vi um homem de chinelos atravessar a rodovia cheia de carros
Nesse momento Eu dizia que penso que demora muito para um corpo se estragar ainda em vida
É preciso muita coca-cola, fritura, álcool, fumo
Ou só uma genética mesmo muito ruim
Mas eu também dizia
Enquanto via aquele homem de chinelos atravessar a avenida perigosa
Eu dizia que eu penso que a vida é ao mesmo tempo muito frágil 
Um fio tão fino e
fatal
como a possibilidade do tropeço desse homem de chinelos no meio da rodovia
 
Como a possibilidade de um homem erguer uma vara daquelas limpadoras de piscina para pegar uma peteca no tobogã e essa vara de metal nem estar tão perto mas perto o suficiente para puxar a energia de um fio desencapado no poste da rua e uma descarga de não sei quantos mil kilowatts eletrizar o corpo do seu pai no churrasco de família 
E sua mãe,
Que dirige esse carro em que você está
Ter socorrido ele.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Poliuretano / Poliuterino

Eu escrevi esse poema, Poliuretano, depois de um episódio traumático de quase asfixia por um incêndio no meu quarto, uma vela de citronela que esqueci acesa à noite. João tava lá na casa de Campinas, no quarto da Olívia no andar de cima, e desceu quando me ouviu abrindo todas as janelas. Fomos dormir 5h da manhã. Depois ele escreveu Poliuterino.


Poliuretano


Meu corpo coberto

Minha cama coberta

Meu corpo e minha cama cobertos de fuligem


Last night you guys almost found me dead in the plastic smoke

You guys almost found me dead last night

thank you João for saving me

from my mind

I saved myself from the smoke and

You saved me from myself


Chorar por detrás dos olhos, sim

A agonia, 

o grande estar-mudo

(chorar por detrás dos olhos)


Não quero acordar. Acordei,

tomei banho, limpei 

a fuligem nas narinas


Sei que seus olhos arderam, os meus também

(assim como o criado-mudo, derretendo lentamente, sono e silêncio)

Te dei íons para que eles parassem de doer e


Fiz comida,

como “Matou a família depois foi ao cinema”:

“Salvou-se do incêndio depois chamou os amigos para comer brigadeiro”.




Poliuterino


meu corpo coberto de novo

casa feminina acolhedora como útero

distante, e efêmero

nove meses em uma semana

e depois ficar sozinho

saudade eterna


me salvaram de mim mesmo

— hora de não enlouquecer! —

cuidado materno, química amniótica, íons

poção de sangue em cima do fogão

mulheres distantes dos úteros de onde saíram (mulherão da porra!)


fogo, transformação irreversível

mutações aleatórias

antropogênese, antropofagia

a concepção de um novo ser, a construção da identidade

noppera-bōs dançando, sincronizando os passos

macios, plásticos — homens não-líticos


sinestesia, memória

tai chi e música que transportam

choro de criança, choro e infância

REGRESSUS AD UTERUM

retorno ao conforto primitivo


the silence that's suddenly heard after the burning of a candle

you won’t see me you’ll only see that you can’t see very far

Reassemblage (1982), Trinh T. Minh-ha

Scarcely twenty years were enough to make two billion people define themselves as underdeveloped. I do not intend to speak about. Just speak near by. A film about what? A film on Senegal; but what in Senegal?


Reality is delicate. My irreality and imagination...are otherwise dull. The habit of imposing a meaning...to every single sign.


What I see is life looking at me. 


O tempo só anda de ida.

A gente nasce, cresce, amadurece, envelhece e morre.
Pra não morrer
É só amarrar o tempo no poste.
Eis a ciência da poesia:
Amarrar o tempo no poste



Manoel de Barros

O salário do trabalhador volta para a circulação do capital, o retorno do capitalista se dirige aos reinvestimentos (para a concentração do capital) e também para consumo, luxo próprio.

It was constructed. It was perverse. There was no one. Man had withdrawn, leaving traces of his deeds. There was nothing, nothing at all. We were lost, happy to desire nothing again.


De algum filme...Resnais? Godard? É a Brigitte Bardot falando.

Eu não quero mais ser papel carbono.


Eu não quero que ninguém me veja chorando.


"Tenho que arrumar a mala de ser. 

 Tenho que existir a arrumar malas"


"Fui meu pai e meu filho".

Aposta Hilda, então, na ideia do hermético, não como um muro intransponível, mas, seguindo o pensamento do filósofo Soren Kierkegaard, que não se cansava de ler, como “o escudo que os homens usam para se fecharem dentro de si mesmos”. O hermetismo – a fronteira, a pele, o limite – é uma defesa necessária do humano. Por isso, toda literatura é “hermética”: ela “prende” uma parte do mundo em uma moldura de beleza. A ficção deixa, assim, de ser pura razão (saber), ou puro sonho (fantasia), para se tornar uma espécie de abrigo em que guardamos e alimentamos o que temos de mais precioso. O que guardamos? O que podemos ser e não somos.
A ficção – e a poesia é apenas outra forma de ficção - é a confluência da expansão com o limite. É uma expansão que enquadra – é uma expansão que traça uma fronteira. Hilda sempre defendeu a ideia de que as máscaras são armas indispensáveis à salvação humana. Só mascarados (só em “estado de ficção”) conseguimos, enfim, nos ultrapassar. Fascinada pelas ideias do Oriente, Hilda via a ficção como um espaço para o satori, isto é, para a iluminação. A luz plena sem a proteção de um anteparo cega em vez de iluminar. Ainda assim, essa proteção — como um quebra-luz — não nos traz promessa alguma de felicidade. Mesmo mascarados e distanciados, não temos o direito de nos iludir. Pergunta Hilda, a propósito: “Pode ser feliz quem sabe que caminha para a morte?”

Music for a Wilderness by R. Murray Schafer - Lake Kalvfestivalen 2014



tirei de algum lugar (grifo meu)

"Já vi gente tomando suco de taro cru para purificar o sangue e desintoxicar o corpo, seja lá o que essas coisas queiram dizer. E há quem recomende ainda dar inhame cru a crianças e interromper se acaso pinicar. É que ele e outros membros comestíveis da família das aráceas, como a taioba e o mangarito, têm oxalatos de cálcio que podem vir em variadas concentrações e o efeito imediato é como morder uma almofadinha de agulhas"

“A realidade não se encontra em apenas um sonho, mas em muitos sonhos” – intertítulo de As mil e uma noites (Il fiore delle mille e una notte, Pier Paolo Pasolini, 1974)

de Carol

Devemos amar do jeito que for possível, em vez de alimentar a fantasia da harmonia. Livia Garcia-Roza

Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar. Antonio Machado


do bom.

ah esse é um clássico, esse, esse é uma Coisa!

AQUELE QUE TEM UM AMOR NA BARRIGA

Aquele que tem um amor na barriga não precisa jogar fliperama, porque um amor já está próximo o suficiente da performance para que nós não tenhamos necessidade dessa máquina contra a qual nós só conseguimos perder. Quando uma mulher chora sob a chuva é porque seu amante a deixou. E ele a deixou porque ela não conseguiu se apegar a ele. Existe obrigatoriamente um esforço no amor, apenas é assim. As limitações nos fazem livres. O terror não pode ser tão atroz quanto o medo do terror. Ou - ser abandonado não pode te isolar tanto quanto o medo do fim, pois o medo do fim cria um clima em que você tem medo do terror. Desmontar tudo em peças soltas e juntar de novo, isso deveria ser bonito. A gente só pode partir do que se é. A falta de utopia é uma utopia. E a ideia de um amor belo é uma bela ideia, mas a maioria dos quartos tem quatro paredes, a maioria das ruas é pavimentada e para respirar você precisa de ar. Sim - a máquina é um produto perfeito da mente. Eu tomei minha decisão, vou jogar fliperama e deixar a máquina ganhar, não importa – o vencedor, afinal, sou eu.

Março, 1971
(in Les films libèrent la tête – Essais et notes de travail.)
 
Rainer Werner Fassbinder
Nós sempre fomos a família das mulheres de olhar triste. 
Mulheres tristes e polidas.

Nina me mandou esse poema em 2017, acho

Quando alugamos um apartamento alugamos

uma paisagem alugamos vizinhos com os quais

cruzamos no elevador a temperatura das manhãs

determinados barulhos certas incidências

do sol poeira alugamos as palavras

que nos dirigem os porteiros as distâncias relativas

dos lugares que frequentamos alugamos os lugares

que passamos a frequentar o cheiro de tinta o toque

dos tacos alugamos o direito de dizer que aí moramos

o salvo-conduto para entrar e sair e mesmo a permissão

para morrer aí alugamos a memória futura

de um apartamento e o direito de metê-lo

num poema


Ana Martins Marques

escrevi isso aos quase 19 anos

"Preciso escrever", pensei agora há pouco após o banho tardio. Então corro pro computador fingindo pra mim mesma que essa porra pode funcionar como um pedaço qualquer de papel branco, que poderia ser arrancado de uns dos caderninhos deixados por Úrsula; ou poderia ser um dos pedacinhos de rascunho que ficam na cozinha junto às canetas.

Meu lado mais racional se questiona por que eu sinto coisas como — amor — . Sou capaz de me abrir e revelar todos os grandes mistérios? Como bater o martelo nos preguinhos das ripas da vida em dois?

Mas ao mesmo tempo entendo por que eu quero sofrer, por que existe minha necessidade de chorar.


Com quase 19 anos, Tenho me sentido uma completamente idiota. Improdutiva. Sem estímulos. Tirando uma filosofia do meio de não sei quê. Sem crença alguma. Inventando algum deus possível. Porque olhe bem para as coisas que larguei e que estão num enorme "pretendo voltar": violão, colagens, desenho, cantar?, escalada. Porque essas coisas só nascem quando sinto calafrios e solidão. E talvez eu precise delas pra sempre.


É o medo que vem no fim de ano, e que me faz lembrar as noites difíceis de São Paulo. E que talvez eu quisesse viver esse urbano terrível, esse esgoto que nunca vivi. Talvez porque o difícil me inspira mais e me dá vontade de andar por entre a multidão das ruas, filmando tudo. Pra tentar cutucar ainda mais aquilo que sinto logo após um momento de prazer: que o mundo é desigual e nunca deixará de ser.


Olho pra um lugar e vejo a cena de um filme que faria. Mas que sei sobre cinema?


Seja feliz, não se preocupe.

hoje tirarei uma fotografia

e não vou te mostrar.
"Cada um de nós, presumo, pode possuir algum objeto ao qual se apega por motivos pessoais: para alguns, é um livro; para alguns, talvez uma bugiganga muito banal e um tanto feia; para outra pessoa, talvez, um pedaço de urna sem valor. Não vemos a química como ela realmente é. Para revelar a verdade, somos incapazes de vê-los como objetos. O que vemos neles, por meio da química, são as memórias e emoções, os planos ou arrependimentos que atribuímos a essas coisas por um período de tempo mais ou menos longo, às vezes para sempre. Ora, este é o mistério cinematográfico: um objeto como este, com o seu carácter pessoal, é por assim dizer, um objeto situado numa ação dramática de carácter igualmente fotográfico, revela o seu carácter moral, a sua expressão humana e viva quando reproduzido cinematograficamente".

Jean Epstein, 1925

sexta-feira, 18 de junho de 2021

piss factory



 fuck, ask the dust.


 William Eggleston, Untitled, 1974, chromogenic print

Eu gostaria de saber quem você é.

Hoje acordei as onze horas da manhã e passei o dia sentindo saudades

Sonhei com o pai, nos olhávamos com tanto carinho -

Esse desconhecido, esse de quem sou cópia, a quem pertence metade do eu-embrião, esse quem me viu mas eu não vi.


Eu não o vi.

Não o escutei.


Será que sua voz ainda ressoa entre minhas membranas?

Seria ela um canto infinito, atingindo músculos e veias capilares ao contar dos anos, dos fios de cabelo, do meu crescimento?


Eu o vi e éramos íntimos. Tinha olhos verdes, mas pelo que sei, ele não tinha olhos verdes.

Ele era uma fotografia feliz, em movimento


Quem é ele? Sei o que escutava, porque os discos ficaram pra mim mas

Quem é você? 

Estranho que me fez, mal me criou e partiu para um lugar só acessível nos sonhos.


Eu nunca pensei muito em você.

Como pensar em alguém que só sei porque me contaram que era de tal jeito, que ria assim, que sempre que ia nos restaurantes pedia uma pizza só pra ele, que uma vez de tanta raiva pegou o rodo e bateu bateu bateu no vaso sanitário entupido até que o cabo de madeira quebrou.


Eu não sei criar personagens. Vocês todos estão na minha vida.


Vou te construindo um boneco. Vão me contando e aos poucos ponho as roupinhas, colo as unhas dos dedos, desenho as máscaras para cada feição, cada situação. Eu gostaria de saber quem você é.

Garoto


Fui agraciado com o amor sem limites.

Mas, quando garoto,

a gente preocupada trabalhava

e eu escapava

para as margens do rio Rion

e vagava sem fazer nada.

Aborrecia-se minha mãe:

"Garoto danado!"

Meu pai me ameaçava com o cinturão.

Mas eu, com três rublos falsos,

jogava com os soldados sob os muros.

Sem o peso da camisa,

sem o peso das botas,

de costas ou de barriga no chão,

torrava-me ao sol de Kutaís

até sentir pontadas no coração.

O sol assombrava:

"Daquele tamaninho

e com um tal coração!

Vai partir-lhe a espinha!

Como, será que cabem

nesse tico de gente

o rio,

o coração,

eu

e cem quilómetros de montanhas?”


Maiakovski

Uma vez Francesca me disse 

"as pedras são o povo mais antigo que habitou a terra"


e nunca mais esqueci.



Francesca e Zorzal, queridos, obrigada.

Esses jogos perigosos não são guerra nem estão no mar ou no espaço mas por detrás de um óculos e um par de jeans.

Leonilson

eu não lembro disso

No meu sonho, haviam três personagens. A mulher de cabelo preto, o homem de cabelo preto e o homem loiro. Certas horas, eu “incorporava” a mulher de cabelo preto, enquanto outras horas a via de longe.


Essa mulher vivia uma história de amor com o homem de cabelo preto. Lembro dos dois saindo na rua, o vento batendo na saia preta que ia até joelho e em seus cabelos. Pareciam felizes, riam. Aí entra o narrador em off, o enredo subentendido. O homem queria casar, ou algum tipo de comprometimento, mas a mulher disfarçava e fugia da questão. 

Depois aparece em um restaurante a noite. Acho que faz uma refeição ou bebe sozinha numa mesa. Estava frio, porque as pessoas usavam casacos, agasalhos. A mulher estava de sobretudo preto. Algumas pessoas estavam em pé na parte do “bar” do restaurante, quando não se tem cadeiras e só aquelas mesas de pé alto. Esbarrou com o homem louro ali. Ele a reconheceu, porque tinham sido colegas de colégio quando pequenos. Me lembrou realmente daquele menino louro que realmente via muitas vezes quando criança e achava lindo, era um pouco mais velho, 2 ou 3 anos. Mas depois ele sumiu. Enfim, os dois conversam, ele é o dono ou a família é dona do restaurante. Acontece uma conexão muito forte, os dois se pegam, não sei direito, ela vai parar na casa dele e fica louca, apaixonada. Dorme lá. Era um quarto simples, num bairro periférico, paredes mal rebocadas. Acho que lembro do sexo, porque era “eu” no momento. Uma hora o homem loiro disse que nos olhavam, e quando virei para ver como isso acontecia, via pessoas subindo uma escada de cimento, que passava do lado de fora da casa, mas rente a janela. Um homem de bigode e uma menina morena nos olhavam, carregavam baldes, acho.

O mais maluco com esse homem loiro é que conversávamos, nos comunicamos, mas era estranho, tinha um apelo sexual estranho.


Nessa paixão a mulher simplesmente some da família, do homem de cabelo preto. A sensação é de que passaram meses, mas foram segundos. Não só porque era sonho, mas também pelo que a personagem vivia ali. Depois eles começam a se dar mal, e ela se arrepende de ter largado o outro. Volta a conversar com ele, pedir desculpa acho, não sei o quê. Não lembro se voltam. Mas lembro desse narrador em off, dessa linha narrativa. Tudo era escuro. Sobre o casamento com homem de cabelo preto, acho que a princípio ela fingiu concordar...teve cenas dos preparativos, mas que se passava em outro momento histórico. França na renascença, início do século XVIII. Cenário de Marie Antoinette, da Sofia Coppola, mas os tons pasteis eram mais sombrios, menos vibrantes. Tinha essa questão dos doces, bolos, a decoração, toalha de mesa. Mas também se escolhia a música, e o principal: o pianista. Vários foram chamados, assisti o recital de vários: Bach, Mozart, não lembro mais. Não eram “eles”, eram pianistas que sabiam interpretar muito bem o estilo específico deles.


***


Em outra parte do sonho eu estava numa sala de cinema liberada durante a pandemia. A Rita Lee era dona da sala e eu tinha conseguido entrar pq era amiga de Graize, Murilo, etc. Acho que antes disso acontecer, eu e algumas pessoas do meu ensino médio fomos barrados por policiais, estávamos numa van, acho. Era noite. Sempre noite. Acho que nos pegaram com bebida, perto ali da terceira ponte, da assembleia legislativa. Mas não deu em nada.


***


Uma baladinha estranha, que misturava vários personagens. Eu devia ser meio que a dona do lugar, mas uma dona distante. Luzes verdes num lugar muito escuro. Tinha uma porta principal e uma saída do outro lado, uma porta (no mesmo formato quadrado) só que sem a porta, só a passagem, que já dava direto pra calçada, pra rua, mas pra uma pequena vila, meio publico meio privado, o vão interno de prédios que se agrupam em quatro. Via um homem careca. Conversava com pessoas, muita gente.

Sobre as ripas da ponte, sobre os adros do barco, sobre o mar, com o percurso do sol no céu e com o do barco, se esboça, se esboça e se destrói, com a mesma lentidão, uma escritura, ilegível e dilacerante de sombras, de arestas, de traços de luz entrecortada e refratada nos ângulos, nos triângulos de uma geometria fugaz que se escoa ao sabor da sombra das vagas do mar. Para em seguida, mais uma vez, incansavelmente, continuar a existir.


Marguerite Duras, L’amant de la Chine du Nord

Nossa cultura é a macumba e não a ópera.


Glauber