sexta-feira, 25 de junho de 2021

Poliuretano / Poliuterino

Eu escrevi esse poema, Poliuretano, depois de um episódio traumático de quase asfixia por um incêndio no meu quarto, uma vela de citronela que esqueci acesa à noite. João tava lá na casa de Campinas, no quarto da Olívia no andar de cima, e desceu quando me ouviu abrindo todas as janelas. Fomos dormir 5h da manhã. Depois ele escreveu Poliuterino.


Poliuretano


Meu corpo coberto

Minha cama coberta

Meu corpo e minha cama cobertos de fuligem


Last night you guys almost found me dead in the plastic smoke

You guys almost found me dead last night

thank you João for saving me

from my mind

I saved myself from the smoke and

You saved me from myself


Chorar por detrás dos olhos, sim

A agonia, 

o grande estar-mudo

(chorar por detrás dos olhos)


Não quero acordar. Acordei,

tomei banho, limpei 

a fuligem nas narinas


Sei que seus olhos arderam, os meus também

(assim como o criado-mudo, derretendo lentamente, sono e silêncio)

Te dei íons para que eles parassem de doer e


Fiz comida,

como “Matou a família depois foi ao cinema”:

“Salvou-se do incêndio depois chamou os amigos para comer brigadeiro”.




Poliuterino


meu corpo coberto de novo

casa feminina acolhedora como útero

distante, e efêmero

nove meses em uma semana

e depois ficar sozinho

saudade eterna


me salvaram de mim mesmo

— hora de não enlouquecer! —

cuidado materno, química amniótica, íons

poção de sangue em cima do fogão

mulheres distantes dos úteros de onde saíram (mulherão da porra!)


fogo, transformação irreversível

mutações aleatórias

antropogênese, antropofagia

a concepção de um novo ser, a construção da identidade

noppera-bōs dançando, sincronizando os passos

macios, plásticos — homens não-líticos


sinestesia, memória

tai chi e música que transportam

choro de criança, choro e infância

REGRESSUS AD UTERUM

retorno ao conforto primitivo


the silence that's suddenly heard after the burning of a candle

you won’t see me you’ll only see that you can’t see very far

Reassemblage (1982), Trinh T. Minh-ha

Scarcely twenty years were enough to make two billion people define themselves as underdeveloped. I do not intend to speak about. Just speak near by. A film about what? A film on Senegal; but what in Senegal?


Reality is delicate. My irreality and imagination...are otherwise dull. The habit of imposing a meaning...to every single sign.


What I see is life looking at me. 


O tempo só anda de ida.

A gente nasce, cresce, amadurece, envelhece e morre.
Pra não morrer
É só amarrar o tempo no poste.
Eis a ciência da poesia:
Amarrar o tempo no poste



Manoel de Barros

O salário do trabalhador volta para a circulação do capital, o retorno do capitalista se dirige aos reinvestimentos (para a concentração do capital) e também para consumo, luxo próprio.

It was constructed. It was perverse. There was no one. Man had withdrawn, leaving traces of his deeds. There was nothing, nothing at all. We were lost, happy to desire nothing again.


De algum filme...Resnais? Godard? É a Brigitte Bardot falando.

Eu não quero mais ser papel carbono.


Eu não quero que ninguém me veja chorando.


"Tenho que arrumar a mala de ser. 

 Tenho que existir a arrumar malas"


"Fui meu pai e meu filho".

Aposta Hilda, então, na ideia do hermético, não como um muro intransponível, mas, seguindo o pensamento do filósofo Soren Kierkegaard, que não se cansava de ler, como “o escudo que os homens usam para se fecharem dentro de si mesmos”. O hermetismo – a fronteira, a pele, o limite – é uma defesa necessária do humano. Por isso, toda literatura é “hermética”: ela “prende” uma parte do mundo em uma moldura de beleza. A ficção deixa, assim, de ser pura razão (saber), ou puro sonho (fantasia), para se tornar uma espécie de abrigo em que guardamos e alimentamos o que temos de mais precioso. O que guardamos? O que podemos ser e não somos.
A ficção – e a poesia é apenas outra forma de ficção - é a confluência da expansão com o limite. É uma expansão que enquadra – é uma expansão que traça uma fronteira. Hilda sempre defendeu a ideia de que as máscaras são armas indispensáveis à salvação humana. Só mascarados (só em “estado de ficção”) conseguimos, enfim, nos ultrapassar. Fascinada pelas ideias do Oriente, Hilda via a ficção como um espaço para o satori, isto é, para a iluminação. A luz plena sem a proteção de um anteparo cega em vez de iluminar. Ainda assim, essa proteção — como um quebra-luz — não nos traz promessa alguma de felicidade. Mesmo mascarados e distanciados, não temos o direito de nos iludir. Pergunta Hilda, a propósito: “Pode ser feliz quem sabe que caminha para a morte?”

Music for a Wilderness by R. Murray Schafer - Lake Kalvfestivalen 2014



tirei de algum lugar (grifo meu)

"Já vi gente tomando suco de taro cru para purificar o sangue e desintoxicar o corpo, seja lá o que essas coisas queiram dizer. E há quem recomende ainda dar inhame cru a crianças e interromper se acaso pinicar. É que ele e outros membros comestíveis da família das aráceas, como a taioba e o mangarito, têm oxalatos de cálcio que podem vir em variadas concentrações e o efeito imediato é como morder uma almofadinha de agulhas"

“A realidade não se encontra em apenas um sonho, mas em muitos sonhos” – intertítulo de As mil e uma noites (Il fiore delle mille e una notte, Pier Paolo Pasolini, 1974)

de Carol

Devemos amar do jeito que for possível, em vez de alimentar a fantasia da harmonia. Livia Garcia-Roza

Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar. Antonio Machado


do bom.

ah esse é um clássico, esse, esse é uma Coisa!

AQUELE QUE TEM UM AMOR NA BARRIGA

Aquele que tem um amor na barriga não precisa jogar fliperama, porque um amor já está próximo o suficiente da performance para que nós não tenhamos necessidade dessa máquina contra a qual nós só conseguimos perder. Quando uma mulher chora sob a chuva é porque seu amante a deixou. E ele a deixou porque ela não conseguiu se apegar a ele. Existe obrigatoriamente um esforço no amor, apenas é assim. As limitações nos fazem livres. O terror não pode ser tão atroz quanto o medo do terror. Ou - ser abandonado não pode te isolar tanto quanto o medo do fim, pois o medo do fim cria um clima em que você tem medo do terror. Desmontar tudo em peças soltas e juntar de novo, isso deveria ser bonito. A gente só pode partir do que se é. A falta de utopia é uma utopia. E a ideia de um amor belo é uma bela ideia, mas a maioria dos quartos tem quatro paredes, a maioria das ruas é pavimentada e para respirar você precisa de ar. Sim - a máquina é um produto perfeito da mente. Eu tomei minha decisão, vou jogar fliperama e deixar a máquina ganhar, não importa – o vencedor, afinal, sou eu.

Março, 1971
(in Les films libèrent la tête – Essais et notes de travail.)
 
Rainer Werner Fassbinder
Nós sempre fomos a família das mulheres de olhar triste. 
Mulheres tristes e polidas.

Nina me mandou esse poema em 2017, acho

Quando alugamos um apartamento alugamos

uma paisagem alugamos vizinhos com os quais

cruzamos no elevador a temperatura das manhãs

determinados barulhos certas incidências

do sol poeira alugamos as palavras

que nos dirigem os porteiros as distâncias relativas

dos lugares que frequentamos alugamos os lugares

que passamos a frequentar o cheiro de tinta o toque

dos tacos alugamos o direito de dizer que aí moramos

o salvo-conduto para entrar e sair e mesmo a permissão

para morrer aí alugamos a memória futura

de um apartamento e o direito de metê-lo

num poema


Ana Martins Marques

escrevi isso aos quase 19 anos

"Preciso escrever", pensei agora há pouco após o banho tardio. Então corro pro computador fingindo pra mim mesma que essa porra pode funcionar como um pedaço qualquer de papel branco, que poderia ser arrancado de uns dos caderninhos deixados por Úrsula; ou poderia ser um dos pedacinhos de rascunho que ficam na cozinha junto às canetas.

Meu lado mais racional se questiona por que eu sinto coisas como — amor — . Sou capaz de me abrir e revelar todos os grandes mistérios? Como bater o martelo nos preguinhos das ripas da vida em dois?

Mas ao mesmo tempo entendo por que eu quero sofrer, por que existe minha necessidade de chorar.


Com quase 19 anos, Tenho me sentido uma completamente idiota. Improdutiva. Sem estímulos. Tirando uma filosofia do meio de não sei quê. Sem crença alguma. Inventando algum deus possível. Porque olhe bem para as coisas que larguei e que estão num enorme "pretendo voltar": violão, colagens, desenho, cantar?, escalada. Porque essas coisas só nascem quando sinto calafrios e solidão. E talvez eu precise delas pra sempre.


É o medo que vem no fim de ano, e que me faz lembrar as noites difíceis de São Paulo. E que talvez eu quisesse viver esse urbano terrível, esse esgoto que nunca vivi. Talvez porque o difícil me inspira mais e me dá vontade de andar por entre a multidão das ruas, filmando tudo. Pra tentar cutucar ainda mais aquilo que sinto logo após um momento de prazer: que o mundo é desigual e nunca deixará de ser.


Olho pra um lugar e vejo a cena de um filme que faria. Mas que sei sobre cinema?


Seja feliz, não se preocupe.

hoje tirarei uma fotografia

e não vou te mostrar.
"Cada um de nós, presumo, pode possuir algum objeto ao qual se apega por motivos pessoais: para alguns, é um livro; para alguns, talvez uma bugiganga muito banal e um tanto feia; para outra pessoa, talvez, um pedaço de urna sem valor. Não vemos a química como ela realmente é. Para revelar a verdade, somos incapazes de vê-los como objetos. O que vemos neles, por meio da química, são as memórias e emoções, os planos ou arrependimentos que atribuímos a essas coisas por um período de tempo mais ou menos longo, às vezes para sempre. Ora, este é o mistério cinematográfico: um objeto como este, com o seu carácter pessoal, é por assim dizer, um objeto situado numa ação dramática de carácter igualmente fotográfico, revela o seu carácter moral, a sua expressão humana e viva quando reproduzido cinematograficamente".

Jean Epstein, 1925

sexta-feira, 18 de junho de 2021

piss factory



 fuck, ask the dust.


 William Eggleston, Untitled, 1974, chromogenic print

Eu gostaria de saber quem você é.

Hoje acordei as onze horas da manhã e passei o dia sentindo saudades

Sonhei com o pai, nos olhávamos com tanto carinho -

Esse desconhecido, esse de quem sou cópia, a quem pertence metade do eu-embrião, esse quem me viu mas eu não vi.


Eu não o vi.

Não o escutei.


Será que sua voz ainda ressoa entre minhas membranas?

Seria ela um canto infinito, atingindo músculos e veias capilares ao contar dos anos, dos fios de cabelo, do meu crescimento?


Eu o vi e éramos íntimos. Tinha olhos verdes, mas pelo que sei, ele não tinha olhos verdes.

Ele era uma fotografia feliz, em movimento


Quem é ele? Sei o que escutava, porque os discos ficaram pra mim mas

Quem é você? 

Estranho que me fez, mal me criou e partiu para um lugar só acessível nos sonhos.


Eu nunca pensei muito em você.

Como pensar em alguém que só sei porque me contaram que era de tal jeito, que ria assim, que sempre que ia nos restaurantes pedia uma pizza só pra ele, que uma vez de tanta raiva pegou o rodo e bateu bateu bateu no vaso sanitário entupido até que o cabo de madeira quebrou.


Eu não sei criar personagens. Vocês todos estão na minha vida.


Vou te construindo um boneco. Vão me contando e aos poucos ponho as roupinhas, colo as unhas dos dedos, desenho as máscaras para cada feição, cada situação. Eu gostaria de saber quem você é.

Garoto


Fui agraciado com o amor sem limites.

Mas, quando garoto,

a gente preocupada trabalhava

e eu escapava

para as margens do rio Rion

e vagava sem fazer nada.

Aborrecia-se minha mãe:

"Garoto danado!"

Meu pai me ameaçava com o cinturão.

Mas eu, com três rublos falsos,

jogava com os soldados sob os muros.

Sem o peso da camisa,

sem o peso das botas,

de costas ou de barriga no chão,

torrava-me ao sol de Kutaís

até sentir pontadas no coração.

O sol assombrava:

"Daquele tamaninho

e com um tal coração!

Vai partir-lhe a espinha!

Como, será que cabem

nesse tico de gente

o rio,

o coração,

eu

e cem quilómetros de montanhas?”


Maiakovski

Uma vez Francesca me disse 

"as pedras são o povo mais antigo que habitou a terra"


e nunca mais esqueci.



Francesca e Zorzal, queridos, obrigada.

Esses jogos perigosos não são guerra nem estão no mar ou no espaço mas por detrás de um óculos e um par de jeans.

Leonilson

eu não lembro disso

No meu sonho, haviam três personagens. A mulher de cabelo preto, o homem de cabelo preto e o homem loiro. Certas horas, eu “incorporava” a mulher de cabelo preto, enquanto outras horas a via de longe.


Essa mulher vivia uma história de amor com o homem de cabelo preto. Lembro dos dois saindo na rua, o vento batendo na saia preta que ia até joelho e em seus cabelos. Pareciam felizes, riam. Aí entra o narrador em off, o enredo subentendido. O homem queria casar, ou algum tipo de comprometimento, mas a mulher disfarçava e fugia da questão. 

Depois aparece em um restaurante a noite. Acho que faz uma refeição ou bebe sozinha numa mesa. Estava frio, porque as pessoas usavam casacos, agasalhos. A mulher estava de sobretudo preto. Algumas pessoas estavam em pé na parte do “bar” do restaurante, quando não se tem cadeiras e só aquelas mesas de pé alto. Esbarrou com o homem louro ali. Ele a reconheceu, porque tinham sido colegas de colégio quando pequenos. Me lembrou realmente daquele menino louro que realmente via muitas vezes quando criança e achava lindo, era um pouco mais velho, 2 ou 3 anos. Mas depois ele sumiu. Enfim, os dois conversam, ele é o dono ou a família é dona do restaurante. Acontece uma conexão muito forte, os dois se pegam, não sei direito, ela vai parar na casa dele e fica louca, apaixonada. Dorme lá. Era um quarto simples, num bairro periférico, paredes mal rebocadas. Acho que lembro do sexo, porque era “eu” no momento. Uma hora o homem loiro disse que nos olhavam, e quando virei para ver como isso acontecia, via pessoas subindo uma escada de cimento, que passava do lado de fora da casa, mas rente a janela. Um homem de bigode e uma menina morena nos olhavam, carregavam baldes, acho.

O mais maluco com esse homem loiro é que conversávamos, nos comunicamos, mas era estranho, tinha um apelo sexual estranho.


Nessa paixão a mulher simplesmente some da família, do homem de cabelo preto. A sensação é de que passaram meses, mas foram segundos. Não só porque era sonho, mas também pelo que a personagem vivia ali. Depois eles começam a se dar mal, e ela se arrepende de ter largado o outro. Volta a conversar com ele, pedir desculpa acho, não sei o quê. Não lembro se voltam. Mas lembro desse narrador em off, dessa linha narrativa. Tudo era escuro. Sobre o casamento com homem de cabelo preto, acho que a princípio ela fingiu concordar...teve cenas dos preparativos, mas que se passava em outro momento histórico. França na renascença, início do século XVIII. Cenário de Marie Antoinette, da Sofia Coppola, mas os tons pasteis eram mais sombrios, menos vibrantes. Tinha essa questão dos doces, bolos, a decoração, toalha de mesa. Mas também se escolhia a música, e o principal: o pianista. Vários foram chamados, assisti o recital de vários: Bach, Mozart, não lembro mais. Não eram “eles”, eram pianistas que sabiam interpretar muito bem o estilo específico deles.


***


Em outra parte do sonho eu estava numa sala de cinema liberada durante a pandemia. A Rita Lee era dona da sala e eu tinha conseguido entrar pq era amiga de Graize, Murilo, etc. Acho que antes disso acontecer, eu e algumas pessoas do meu ensino médio fomos barrados por policiais, estávamos numa van, acho. Era noite. Sempre noite. Acho que nos pegaram com bebida, perto ali da terceira ponte, da assembleia legislativa. Mas não deu em nada.


***


Uma baladinha estranha, que misturava vários personagens. Eu devia ser meio que a dona do lugar, mas uma dona distante. Luzes verdes num lugar muito escuro. Tinha uma porta principal e uma saída do outro lado, uma porta (no mesmo formato quadrado) só que sem a porta, só a passagem, que já dava direto pra calçada, pra rua, mas pra uma pequena vila, meio publico meio privado, o vão interno de prédios que se agrupam em quatro. Via um homem careca. Conversava com pessoas, muita gente.

Sobre as ripas da ponte, sobre os adros do barco, sobre o mar, com o percurso do sol no céu e com o do barco, se esboça, se esboça e se destrói, com a mesma lentidão, uma escritura, ilegível e dilacerante de sombras, de arestas, de traços de luz entrecortada e refratada nos ângulos, nos triângulos de uma geometria fugaz que se escoa ao sabor da sombra das vagas do mar. Para em seguida, mais uma vez, incansavelmente, continuar a existir.


Marguerite Duras, L’amant de la Chine du Nord

Nossa cultura é a macumba e não a ópera.


Glauber

ESTAVA

escovando os dentes olhando pro espelho distraidamente quando notei a existência da minha sobrancelha sempre franzida (leia-se miopia) e em menos de um segundo quis lutar kung fu contra esse meu reflexo vestido com o roupãozinho como de costume pra ver se ele vem e acorda e toma tenência de vez o que a vida quer da gente é coragem...

A tarefa de amolecer diariamente o tijolo, a tarefa de abrir caminho na massa pegajosa que se proclama mundo (...)

Cortázar

quando estávamos juntos anotei isso

Ontem fui tomar banho e encontrei os dois pares de chinelos pretos no banheiro.

E fiquei pensando nessa duplicação, nesse esbarro, nesse momento entrecruzado da vida.
Duas retas que se cruzam em um ponto. Acho que essa foto quer dizer o ponto. De repente, me vi ali lavando o chinelo que um dia por acaso encontramos na rua, perto da praia, e que virou seu. Virou seu quando você está aqui, e que as vezes uso. É seu mas está aqui em casa.

o futuro será neolítico

Le but c'est le pouvoir de l'imagination. C’est-à-dire qu’on se donne le droit d’imaginer les choses et de demander aux gens: “Est-ce qu’on peut faire notre imagination chez vous?”

Varda, obviamente

3636-2681

Foi o número que o homem com blusa do flamengo, máscara do flamengo, e que segurava uma sacola de pão, me disse. 
Eu esperava ser atendida sentada num dos bancos do corredor do posto de saúde do bairro da Penha. A porta da minha frente é de odontologia, onde tem um cartaz afixado “favor não entrar”, “favor bater apenas uma vez”. O homem bate uma vez e aparece uma mulher. Ele pede uma nova receita. Ela disse que pode conseguir. Enquanto ele esperava, sentou perto de mim, acho que percebeu meus óculos, aí disse “Você sabia que lá no CRE eles dão óculos de grau de graça?”. Respondi que não sabia e anotei o número no celular, ele quis conferir. Perguntei então estavam os óculos dele, se eles eram pra perto ou pra longe. Ele disse que essa não era a questão, queria me mostrar algo no celular mas a bateria havia arriado. Aí veio a rápida notícia de que a dentista acabara de entrar numa cirurgia que poderia durar 5 minutos ou 1 hora. Ele disse à moça que voltaria amanhã, ou semana que vem, não entendi direito. Observava tudo do meu lugar, sentada, olhando os rostos das pessoas num angulo levemente de baixo pra cima, como a maioria das pessoas sentadas observam. Antes de ir embora, ele me mostrou uma foto da uma mulher jovem, afixada no papel de parede do celular. Perguntei se era sua filha e ele disse que sim. Ela usava óculos. Olhei ele sair e se despedir da moça que o atendeu, também acenei em despedida, ele também. 
Surrealismo. Acontece todo dia. Nos postinhos de saúde. A porta ao lado da odontologia é uma sala com entrada restrita, que diz num cartaz: isolamento covid-19.

a Medida exata entre o acaso e a estrutura

Aprender fazendo, baby. Não ter medo de prosseguir.
Seus limites não transporia desmedida
como uma estrela; pois ali ponto não há
que não te mire. Força é mudares de vida.

Rilke

E pensar que os prisioneiros de guerra faziam rádios pirata com pouco mais de uma gilete e um alfinete de fralda. A cada movimento, uma estação. Ondas, vozes, outro lado do mundo, outro lado da vida. Outra vida. Um chamado, sim. Talvez uma forma de escutar um sonho, um sonho distante, de outra pessoa. Um rádio com uma gilete e um alfinete. 



Pegar uma escada e descer até o profundo de si mesmo


Hijikata Tatsumi ou Artaud ou Kazuo Ohno

Merleau-Ponty fala sobre a carne do mundo. Lembrar disso.

“Esquece o futuro. Ele não te pertence!

O presente te basta!
Mas é preciso ser rápido, quando ele é mau presente
E andar devagar quando se trata de saboreá-lo
Expressões como: “passar o tempo” espelham bem a maneira
de viver dessa prudente que imagina não haver coisa melhor
pra fazer da vida.
Deixam passar o presente, esquivam-se, ignoram o presente…
Como se estar vivo fosse uma coisa desprezível…
Porque a natureza nos deu a vida em condições tão favoráveis…
que só mesmo por nossa culpa ela poderia se tornar pesada e inútil”.


Montaigne



















¿Dónde vas amor mío, vida mía, amor mío, con el aire en un vaso y el mar en un vidrio? 


Ouka Leele

 “Every picture asks a question and makes a statement: who am I? This is who I am.”

- Cindy Sherman

Anywhere Out of the World

Life is a hospital where every patient is obsessed by the desire of changing beds. One would like to suffer opposite the stove, another is sure he would get well beside the window.

It always seems to me that I should be happy anywhere but where I am, and this question of moving is one that I am eternally discussing with my soul.


"Tell my, my soul, poor chilly soul, how would you like to live in Lisbon? It must be warm there, and you would be as blissful as a lizard in the sun. It is a city by the sea; they say that it is built of marble, and that its inhabitants have such a horror of the vegetable kingdom that they tear up all the trees. You see it is a country after my own heart; a country entirely made of mineral and light, and with liquid to reflect them."


My soul does not reply.


"Since you are so fond of being motionless and watching the pageantry of movement, would you like to live in the beatific land of Holland? Perhaps you could enjoy yourself in that country which you have so long admired in paintings on museum walls. What do you say to Rotterdam, you who love forests of masts, and ships that are moored on the doorsteps of houses?"


My soul remains silent.


"Perhaps you would like Batavia better? There, moreover, we should find the wit of Europe wedded to the beauty of the tropics."


Not a word. Can my soul be dead?


"Have you sunk into so deep a stupor that you are happy only in your unhappiness? If that is the case, let us fly to countries that are the counterfeits of Death. I know just the place for us, poor soul. We will pack up our trunks for Torneo. We will go still farther, to the farthest end of the Baltic Sea; still farther from life if possible; we will settle at the Pole. There the sun only obliquely grazes the earth, and the slow alternations of daylight and night abolish variety and increase that other half of nothingness, monotony. There we can take deep baths of darkness, while sometimes for our entertainment, the Aurora Borealis will shoot up its rose-red sheafs like the reflections of the fireworks of hell!"


At last my soul explodes! "Anywhere! Just so it is out of the world!"


- Charles Baudelaire

I KNOW NOT WHAT TOMORROW WILL BRING

she takes the envelope

that says:


I KNOW NOT WHAT TOMORROW WILL BRING.



to my analyst,

I wonder what do you do
when i close the door
and walk home alone

I wonder what do you think
when I said
"I had a dream"
with jim morrison from 
the doors

eu podia...

 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...
 eu podia...

sempre odiei esse tipo de poesia

um navio chega
um navio cega
e se desfaz diante dos meus olhos

memória. do muro
do murro do mundo
o quarto mudo, o quarto mundo
o quarto muda

vidros rolados na parede
marcador impreciso das horas
virginia woolf: a marca na parede
dê-me um poema
sem metas para este ano.
dad is dead.

punk is not dead.

punk is not dad.

kino-glaz

Copio do KINO-GLAZ:


Por incrível que pareça:

eu ainda não nasci


olha só, aparentemente:

eu ainda não nasci


ao que tudo indica:

até que se prove o contrário:

i wasn't born yet.

Para minha avó

A morte me persegue

(A morte está nos meus cabelos brancos
o branco igual ao branco dos meus olhos)
A morte está no reflexo do coador
e da garrafa de café
nos azulejos da cozinha de meu apartamento

A morte está nos
baldes de latão amassados
no ralador enferrujado
na fruteira de cebolas ao lado 
do fogão da cozinha de meu apartamento

A morte está 
na visão que dá para o porto
e para o Hotel Cannes
na janela da cozinha de meu apartamento

A morte está na rede
nos antigos frascos de mezcal, uísque e parati
e outras pratarias
que vocês costumavam brincar ao vir aqui
e correr
na cozinha de meu apartamento

A morte está nos três
filho
marido
neta
que já sentaram no
banquinho da pequena mesa branca
na cozinha de meu apartamento

A morte está nesse
espelho oxidado
que ocupa toda a parede
não da cozinha 
mas da sala de meu apartamento

A morte persegue a
mudança de posição dos móveis
e nenhum
feng-shui
consegue tirar a morte de meu apartamento

Acredito também que esta
luz amarela
que sobe toda noite da rua
até o décimo-primeiro andar
é a luz de esperança e morte
que persegue a mim
e meu apartamento.

fuxico-depresión

o que me pesa para a cama não é o amor


não é você

nem essas confortáveis

almofadas


(man it's really hard to tell)


what pushes me into bed

it's that force

oh sim essa força estúpida

que me ataca 

as vezes na hora do almoço

muito ou pouco sal?


aquele sonho

em duas cores: vermelho e azul

meus cabelos, o espelho


e você que passa por trás de mim

e some.

Like Fernando

I can’t divise myself in two

(l’existence est toujours seule)

but I can leave some

little pieces

behind


your neck

my chest

those trails

pumpkins

sails 


I can grab some pieces and

try to put them together

monotypes of 

colors

and mistakes


Well,

I can’t divise myself in two

or three or four

like Fernando

but

I can leave some pieces behind:


those shops, those objects

tiny cats

little hats

Vivian Maier photographs

holding avocados in my shirt


memories that I’ll never return…


(memoirs

le passé

Peut-je lui trouver?)